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Há 120 anos o Porto foi palco da história de amor de Elisa e Marcela

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Na manhã do dia 8 de Junho de 1901, Mario e Marcela casavam-se na igreja de San Jorge na cidade galega da Corunha. A boda foi testemunhada apenas por um punhado de vizinhos e familiares. Após a cerimónia religiosa, o casal dirigiu-se a uma casa de fotografia para que aquele momento feliz ficasse registado em imagem. 

Poucas semanas depois, esse retrato seria reproduzido um pouco por toda a imprensa portuguesa e espanhola. Descobrira-se que aquele fora «un matrimónio sin hombre», como escreviam os jornais: Mario era, na verdade, Elisa. Posto a nu o escândalo que ofendia a moral pública, Elisa e Marcela fogem da Galiza. Inicialmente, as autoridades julgam-nas na América do Sul. No entanto, em meados de Agosto são capturadas no Porto, cidade onde, durante algumas semanas, tinham experimentado a tranquila vida conjugal de que se consideravam merecedoras. 

Elisa e Marcela conheceram-se em 1885 na Escola Normal da Corunha, instituição onde se formavam as “maestras”, isto é, as professoras do ensino primário. Entre ambas nasce desde logo uma intensa amizade que florescerá em algo que os demais não se atreverão a chamar amor. Os pais de Marcela consideram, no entanto, aquela uma relação perigosa e enviam a filha para Madrid, na tentativa de quebrar os laços com a amiga. Ao regressar, quatro meses depois, Elisa já exerce como professora numa aldeia galega. Marcela completa a formação pouco depois e ambas procurarão colocações em escolas geograficamente próximas. Conseguem-no na povoação de Dumbría, onde passam a morar juntas. A situação não suscita a estranheza dos vizinhos já que era costume as maestras partilharem casa. O que levanta alguma suspeita são os arrufos entre ambas, motivados, dizia-se na vila, pelos ciúmes que Elisa tinha dos pretendentes de Marcela.

Algo sucede no início da Primavera de 1901 que causa a partida de Elisa para a Corunha. Marcela conta aos vizinhos que ela se decidira a emigrar para Cuba. Diz também que aguardava a chegada de Mario, o irmão de Elisa vindo de Inglaterra, com quem se pretendia casar. Na cidade, Elisa prepara-se fisicamente e mentalmente para encarnar aquela personagem masculina, preparando-lhe uma biografia e um álibi minuciosamente elaborados. Para tal, já como Mario, encontra-se com alguns familiares mais crédulos que atestam a ligação familiar, reforçando a verosimilhança da trama. O casamento não levanta qualquer suspeita entre os presentes. É apenas no regresso a Dumbría que o noivo é desmascarado.

De facto, desde a chegada à povoação ninguém acredita na identidade que Elisa sustenta para si. Recebem a visita dos notáveis da vila, médico e pároco, que desejam ver Mario com os seus próprios olhos. Nessa noite, a casa é atacada por vizinhos que exigem castigar a “marimacho” (maria-rapaz) por aquela brincadeira de mau gosto. Elisa consegue fugir em segurança mas a partir desse momento, desfeita que estava a farsa, a situação de ambas perante a justiça espanhola torna-se problemática. Arriscam penas pesadas pelo crime de falsidade, escândalo público e usurpação de nome. A imprensa dá início a uma campanha sensacionalista, conferindo visibilidade nacional ao caso. Elisa foge da Corunha e pouco depois Marcela deixa Dumbría. Antes desse atribulado mês de Junho terminar, conseguem atravessar a fronteira do Minho e chegar à cidade do Porto.

Esperavam começar do zero. Alojam-se numa residencial da Praça da Batalha e rapidamente asseguram emprego: Elisa, que mantinha uma personalidade masculina (adoptava agora o nome “Pepe”), ocupa-se numa alfaiataria, enquanto Marcela trabalha no Café Lisbonense, dirigido pelo Sr. José Nogueira, que se tornará o principal amigo do casal. A pedido da polícia espanhola e após uma denúncia (crê-se que pelo patrão de Elisa, também ele espanhol), são detidas a 16 de Agosto. Perante a ameaça de encarceramento em alas separadas segundo o sexo, Elisa admite finalmente ser mulher. São colocadas na mesma cela. Terão enfim oportunidade de explicar a sua versão da história: todo o plano fora montado depois de Marcela ter sido coagida a casar com um cavalheiro de Dumbría. As autoridades portuguesas, ao contrário do que pretendia a justiça espanhola, recusam-se a entregar Elisa e Marcela senão depois de julgadas pelos crimes cometidos em Portugal e após a formalização de um pedido de extradição. Ambos os processos levariam longos meses a concluírem-se, o que, ironicamente, manterá as nossas protagonistas temporariamente a salvo de uma dura sentença no país de origem (nunca inferior, estimava-se, a dez anos de prisão).

Animada pelo escândalo e pelo exotismo do caso, a população do Porto acompanhará o desenrolar do caso nos jornais diários, em particular no Jornal de Notícias, aquele que chamará a si a defesa das duas espanholas. São abertas subscrições de donativos e de toda a parte o jornal recebe cartas, sobretudo de mulheres, que expressam o seu apoio e simpatia para com a infeliz situação em que se encontram. O Sr. Nogueira encarrega-se desde a primeira hora de lhes levar as refeições à prisão, organizando também ele uma campanha de recolha de fundos no Café Lisbonense. A onda de solidariedade que o caso motivou não deve, no entanto, ser lida à luz das causas do presente. Elisa e Marcela eram duas «mulheres sem tino» que inspiravam compaixão, como escreve uma leitora do JN. O aventureirismo da farsa era desculpabilizado pela ingenuidade destas mulheres que consideraram possível uma subsistência sem a participação de homens. Descontando o sentido fraternal, nunca se fala em amor. Este não é ainda um exemplo de aceitação pública de uma relação homossexual.

Elisa e Marcela são libertadas da Cadeia da Relação do Porto a 29 de Agosto. Os meses seguintes serão de aparente tranquilidade, longe da atenção mediática. Mas a 6 de Janeiro do ano seguinte os jornais voltam a dar conta de um evento insólito: Marcela dá à luz uma menina. Podemos recuar e situar o início da gestação em Março ou Abril do ano anterior, pouco antes de Elisa deixar Dumbría para entrar na pele de Mario. A gravidez pusera em marcha todo aquele plano. A documentação de que dispomos nada nos diz sobre os pormenores da concepção (acidental, premeditada… como tinham procedido?). A verdade é que, no início de 1902, Elisa e Marcela constituem-se como família homoparental. E é nesse momento que se vêem novamente em risco: os juízes portugueses tinham decidido a absolvição de Elisa e passava a pender sobre elas a extradição eminente para Espanha. Teriam de fugir uma segunda vez, para um qualquer lugar onde o braço implacável da justiça não as alcançasse. Decidem então cruzar o Atlântico.

Elisa é a primeira a embarcar para a Argentina, em Abril desse ano. Marcela junta-se a ela uns meses depois, provavelmente para não sujeitar um bebé tão novo a essa viagem difícil. Em Buenos Aires ainda vivem mais um episódio insólito. Para garantir o sustento de Marcela e da criança, Elisa casa-se com um negociante dinamarquês, que a breve trecho vem a descobrir o caso do matrimónio sem homem. Exige a anulação do enlace mas tal não lhe é permitido por lei. De qualquer forma, morrerá pouco tempos depois. Elisa, Marcela e a filha de ambas estão finalmente a salvo. É neste momento que lhes perdemos definitivamente o rasto. Apenas podemos imaginar as cenas em família que terão vivido.

Em 2019, a Netflix lançou o filme "Elisa y Marcela" de Isabel Coixet que conta a relação destas duas mulheres, ficcionando os espaços em branco que os documentos de arquivo não nos permitem determinar com exactidão (ainda que na passagem do casal por Portugal o filme se distancie consideravelmente da verdade histórica). Narciso de Gabriel é um investigador universitário que se tem dedicado a estudar o caso, tendo publicado recentemente "Elisa y Marcela, amigas y amantes". Todos os anos, este exemplo determinação, inventividade e resistência é recordado nos eventos que assinalam o Mês do Orgulho um pouco por toda a Espanha. A 120 anos de distância, a história de Elisa e Marcela continua a inspirar-nos como prova de superação face às adversidades que o amor encontra.

 

Pedro Leitão

 

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